Sidney Fernandes
Segundo Emmanuel, a Comunidade de Espíritos Puros e Eleitos pelo Senhor Supremo do Universo já se reuniu duas vezes na proximidade da Terra. A primeira, quando o orbe terrestre se deslocou da nebulosa solar, e a segunda, quando se decidia a vinda de Jesus à face da Terra. Espíritos abnegados e esclarecidos falam da possibilidade de uma futura terceira reunião, para decidir os destinos do nosso mundo.
A vocação iluminista do Espiritismo, como revivescência do Cristianismo, nos leva a considerar a grande responsabilidade da codificação de Allan Kardec e da obra psicografada por Francisco Cândido Xavier. Todas as notas se encaixam no monumental concerto regido por Jesus, em consonância com as regras diretoras da vida, que regem a nossa comunidade planetária.
E a grandiosidade dessa divina obra se agiganta ainda mais, se considerarmos que a obra de Kardec, complementada por Chico Xavier, foi acompanhada por uma plêiade de espíritos superiores.
Pelas revelações de Emmanuel sobre as mãos que coordenam os problemas decisivos do nosso planeta, deduzimos que o Espiritismo já existia havia muito tempo, no plano espiritual, antes de 1857.
Sob a condução do Cristo, a mensagem espírita começou a ser elaborada desde o momento em que Jesus anunciou a vinda de um consolador — que viria reavivar sua gloriosa mensagem —, isto é, há quase vinte séculos, antes de se tornar realidade para os homens da Terra.
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Como tornar efetiva a revelação que viria complementar a palavra do Cristo, numa época em que grassava a descrença e o materialismo, sem o risco da interferência de falhas mãos humanas? Considerando ainda que, quanto maior a ordem intelectual de uma mensagem, maior é a ingerência dos médiuns que a intermedeiam?
Muitos cuidados foram adotados, tanto pela espiritualidade, como por Allan Kardec, para que se preservasse a pureza dos princípios fundamentais emanados das esferas superiores, na codificação do Espiritismo.
Um deles foi a assunção, pessoal e exclusiva, do Professor Rivail, sob pseudônimo céltico, da responsabilidade sobre as obras que robusteceram os primeiros passos da Doutrina Espírita, sem qualquer referência às pessoas amigas que tanto o ajudaram, para que — segundo suas palavras —, não desabassem sobre elas, mas apenas sobre ele próprio — a tormenta dos interesses feridos, os ventos da ira fanática e as vagas dos princípios contrariados, que naturalmente adviriam do lançamento de O Livro dos Espíritos.
A espiritualidade conseguiu manter Allan Kardec incógnito, na figura do competente pedagogo francês Rivail, até 1857, distante das intempéries que adviriam do surgimento do Espiritismo que, certamente, iria, como assim efetivamente ocorreu, ferir interesses materiais, suscitar indignações, chocar opiniões e abalar o fanatismo.
O cuidado maior, todavia, originou-se dos veneráveis mandatários, em cujas mãos Jesus havia depositado a grande responsabilidade da terceira revelação.
Por que o primeiro Livro dos Espíritos, que continha apenas 501 perguntas, lançado na Libraire Ledoyen, na Galerie d’Orléans, do Palais-Royal, nas proximidades do Rio Sena, em 1857, não foi psicografado?
As meninas de Kardec, expressão criada por Canuto de Abreu, para referir-se a Caroline Baudin, Julie Baudin e Ruth Céline, colocaram de lado os prazeres próprios da mocidade, sacrificaram horas de estudo e afazeres domésticos para prestar, durante mais de um ano, com desinteresse material e dedicação espiritual, o uso de seus dotes mediúnicos. Para que não houvesse qualquer distorção material da obra, as meninas funcionaram como médiuns de efeitos físicos e não de psicografia, para que, de forma alguma, mesmo inconscientemente, pudessem intervir no processo de construção da doutrina nascente.
Eram utilizadas, inicialmente, as chamadas corbelhas escreventes, também chamadas de cestinhas-de-bico, que nada mais eram do que cestinhas de vime, em cujo bico amarrava-se um lápis de pedra, com as mãos das médiuns apenas tocando nas bordas da cesta, para escrever na ardósia, com a escrita direta dos Espíritos.
Na verdade, as auxiliares adolescentes não poderiam mesmo interferir intelectualmente na obra de Kardec. Ainda que participassem de palestras filosóficas e morais, e convivessem com pessoas cultas, pela pouca idade, não deixavam de ser quase meninas, com limitado nível cultural, a não ser pelo adiantamento moral e intelectual que já traziam de existências anteriores.
Esse conjunto de predicados representaram, para os novos preceitos, poderoso elemento de segurança. As revelações, de altíssimo nível, provinham, com certeza, diretamente de fontes muito qualificadas, sem qualquer ingerência humana.
Mais tarde se reconheceu que o cesto e a prancheta, na realidade, não formavam senão um apêndice da mão, e o médium, tomando diretamente o lápis, se pôs a escrever por um impulso involuntário, quase febril.
Introdução de O Livro dos Espíritos
Mesmo assim, somente a segunda edição de O Livro dos Espíritos — a definitiva, que hoje estudamos —, lançada em março de 1860, iria contar, propriamente, com a participação de médiuns psicógrafos.
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E quanto à continuidade do Espiritismo? O que dizer dos cuidados da espiritualidade, para que, da mesma forma que na codificação, fosse preservado o pensamento transladado de esferas superiores para a Terra, agora em solo brasileiro, por intermédio da mediunidade de Francisco Cândido Xavier?
Assim como havia sido feito com Rivail/Kardec, tentou-se preservar o extraordinário médium de Pedro Leopoldo e isentá-lo de quaisquer comprometimentos intelectuais ou morais da obra.
Com Chico Xavier, os espíritos estabeleceram uma parceria mediúnica, dada a natureza intelectual de que passava a se revestir a continuidade da mensagem espírita, complemento natural da codificação.
Se, por um lado, Kardec não precisou ser um médium ostensivo para a elaboração das informações que redundaram na codificação, o mesmo não aconteceu com Chico Xavier.
Ele era a afinidade em pessoa, com a capacidade profunda de acolhimento das múltiplas personalidades desencarnadas, como, por exemplo, ocorreu com os jovens desencarnados, não espíritas, que, preconceituosamente, tinham até medo de entrar em um centro espírita e, mesmo assim, transmitiram sua gloriosa mensagem de imortalidade e de consolo aos seus saudosos familiares.
Quando psicografou a sua primeira grande obra, Parnaso de Além-Túmulo, Chico tinha vinte e dois anos, pouco conhecia de Doutrina Espírita, havia cursado até o quarto ano do antigo ensino fundamental e tinha precária instrução escolar.
Da mesma forma que havia acontecido com as meninas de Kardec, que, por seu nível cultural e por sua inexperiência, pouca idade e desprovimento de adiantamento intelectual, não poderiam trazer a lume aquelas revelações de altíssimo nível, diretamente de eruditas e qualificadas fontes, assim também Chico Xavier não poderia ter tido ingerência nas inúmeras mensagens de que se fez intérprete, porque, no início de sua grande obra psicográfica, pouco sabia de Espiritismo e dispunha de limitada cultura.
Na verdade, por se tratar de espírito de grande elevação, esses atributos jaziam, em Chico, dormentes e contidos pelos laços reencarnatórios de sua existência física, e foram despertando, gradativamente, à medida que se consolidava sua parceira mediúnica com os mentores de sua grandiosa missão, principalmente com Emmanuel.
— Irmã, fale ao Chico para tomar do lápis e papel — recomendou Emmanuel, em uma de suas primeiras manifestações, em 1927, ainda por intermédio de Dona Carmem Pena Perácio, esposa de José Hermínio, casal encarregado de conduzir Chico ao Espiritismo, dando por início seu trabalho de psicografia. Somente alguns anos mais tarde, em 1931, ocorreria o sublime encontro do médium com Emmanuel, sob uma árvore junto ao açude localizado em Pedro Leopoldo.
Esses, dentre muitos outros registros biográficos de Chico Xavier, corroboram a tese de que o grande sensitivo estava reaprendendo e se preparando para a hercúlea tarefa de 75 anos de exercício público da mediunidade, que o levaria a produzir mais de 400 obras psicografadas.
Em 1935, atraído pelas comunicações de Humberto de Campos, o repórter Clementino de Alencar, do jornal O Globo, passou a pesquisar o trabalho mediúnico de Chico Xavier e concluiu que aquele pobre rapaz do mato, de 25 anos, mais parecia um ingênuo caboclo, do que propriamente um escritor.
Referindo-se ao médium, a mãe de Humberto de Campos, em 1944, o descreveu como um cidadão de conhecimentos medíocres, que, mesmo assim, sem qualquer dúvida de sua parte, trazia de volta o inimitável estilo de seu filho.
Diante desses predicados, Chico Xavier não teria, contando somente com os próprios recursos intelectuais, a mínima condição de produzir as peças literárias que recebera e muito menos de exercer qualquer influência sobre os seus conteúdos.
O que dizer, então, depois de percorrer as quatro fases da sua tarefa mediúnica, a partir dos poetas, depois com os escritores, passando pelas obras de grande relevo doutrinário dos doutrinadores Emmanuel e André Luiz e terminando com as comunicações dos jovens na década de setenta?
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Rivail/Kardec e Chico Xavier verteram muito suor e muitas lágrimas no desempenho do nobre destino que a codificação e a consolidação do Espiritismo lhes impuseram. Que secreções preponderaram, nas vidas desses dois missionários? As das glândulas lacrimais ou as das glândulas sudoríparas? Mais sofreram ou mais trabalharam?
Adrede preparados na espiritualidade, sob a supervisão da comunidade de espíritos superiores encarregada de implantar a revivescência do cristianismo na Terra, sem dúvida, ambos vieram com estruturas físicas e intelectuais adequadas para suportar as pressões que adviriam de suas missões.
Poderiam falhar? Sim, pois tinham seus pontos vulneráveis, eram passíveis de cometer erros e, provavelmente, traziam mazelas pretéritas a serem superadas. Além disso, ambos foram submetidos a muitas perseguições e tentações, envolvendo dinheiro, vaidade intelectual, renúncia à paternidade — não tiveram filhos — e a toda espécie de provações e, mesmo assim, mantiveram-se fieis às suas incumbências.
As grandiosas missões, no entanto, que trouxeram sobre os ombros, exigiram deles trabalho, dedicação e a inquebrantável determinação dos grandes personagens da história da humanidade. E o imenso suor derramado, exigido para a consecução de suas obras, o trabalho diuturno, até altas horas da madrugada, que, inclusive, minaram suas energias, minimizaram as lágrimas vertidas, em verdadeiro processo de moratória, pelo empenho no exercício do bem.
Sofreram e tiveram suas estruturas físicas abaladas pelo ritmo de trabalho que desenvolveram? Sem dúvida! Mesmo assim, Allan Kardec desencarnou com quase 69 anos de idade, dentro das expectativas de vida de sua época, e Chico Xavier, mesmo sendo bombardeado por doenças em muitos de seus órgãos — pele, olhos, hérnia, labirintite, angina e próstata — desencarnou com a idade de 92 anos de idade.
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Suor e lágrimas em profusão não impediram que Allan Kardec e Francisco Cândido Xavier cumprissem suas gloriosas tarefas. A eles, nosso humilde reconhecimento.
Obras consultadas:
A Caminho da Luz, Emmanuel
Emmanuel, médium do Cristo, Carlos A. Baccelli
Luzes em Paris, Sidney Fernandes