Índice
Resumo
Aterrorizados com a possibilidade de irem para um suposto inferno eterno, pessoas ingênuas e incultas passaram a acreditar que poderiam cumprir penas alternativas através das indulgências. Espíritos da Terra ou além da Terra podem perdoar pecados e comutar penas capitais? O que eram os excedentes de méritos? Espíritos superiores podem interceder por almas devedoras? Neste artigo trazemos uma proposta de reflexão sobre os desvios da lei divina e os verdadeiros caminhos para a remissão de erros cometidos pelo homem.
Palavras-chave
Idade das Trevas. Inferno. Dante Alighieri. Indulgência. Intercessão. Moratória.
Idade das trevas
Muitos historiadores denominam a Idade Média de Idade das Trevas, generalizando um tempo de ruína e flagelo, pelos fatos e acontecimentos negativos ocorridos nesse período. Outros, menos radicais, procuram não adotar essa ideologia pejorativa, lembrando que, em contraste ao lado obscuro, essa época foi rica em criações, invenções e desenvolvimento.
Todos são unânimes, entretanto, ao admitir que, nesse período, a religião perdeu sua força e viveu uma crise de credibilidade que esvaziou os templos. As críticas e demonstrações claras de insatisfação eram feitas principalmente pelos reformistas John Wycliffe, João Huss e Jerônimo de Praga e se arrastaram por muito tempo.
Novos ares viriam a partir do Renascimento. As artes ganharam novo fôlego, houve resgate da cultura clássica e surgiram novas formas de enxergar o mundo a partir da invenção da imprensa. E de repente, da noite para o dia, passou a ocorrer um grande aumento do número de fiéis, que começaram a voltar a professar sua religião. Por que a frequência às casas religiosas cresceu tão dramaticamente de uma hora para outra? O que provocou essa mudança?
O poema sagrado de Dante1
O inferno, a percepção medieval da danação, havia se tornado um conceito que não assustava mais ninguém, sobretudo os mais astutos e cultos. Até que, no início do século XIV, surgiu O Poema Sagrado de Dante, muito tempo depois registrado como A Divina Comédia, trilogia composta por Dante Alighieri (1265-1321).
O Inferno foi o primeiro livro desse poema épico de 14.233 versos, que descreve a brutal descida de Dante ao mundo inferior, a jornada pelo purgatório e depois a chegada ao Paraíso. Das três partes da trilogia — Inferno, Purgatório e Paraíso —, o Inferno é a mais lida. O livro redefiniu o mundo inferior e se tornou arma infalível para amedrontar pecadores e promover arrependimentos.
Essa visão nítida e aterrorizante descrita por Dante adquiriu contornos de realidade, graças à brilhante ilustração do pintor italiano Alessandro di Mariano di Vanni Filipepi, mais conhecido como Sandro Botticelli (1444, ou 45 ou 46 – 1510), com a forma de um funil subterrâneo de sofrimento, espécie de cornucópia de um submundo desgraçado, composto de fogo, enxofre, esgoto e monstros, com Satanás à espera lá no centro do fosso de nove níveis distintos.
O que é inferno?
Inferno é o mundo inferior que Dante Alighieri retrata na primeira parte do poema épico “A Divina Comédia” como um reino de estrutura complexa povoado por entidades conhecidas como “sombras” — almas desencarnadas presas entre a vida e a morte.2
Da noite para o dia, o então desmoralizado e abstrato conceito de inferno foi transformado em uma visão visceral, palpável e inesquecível. Como era de esperar, após a publicação do poema houve um enorme aumento no número de fiéis nos templos religiosos, graças aos pecadores aterrorizados que buscavam evitar a versão atualizada da danação.
Nos sete séculos que se seguiram à sua publicação, a duradoura visão dantesca do inferno inspirou tributos, pagamentos de indulgências, traduções e variações por parte das mentes mais criativas da história. Dentre elas, a de Henry Wadsworth Longfellow, poeta estadunidense, responsável pela primeira tradução para o inglês da Divina Comédia, em 1876. Sua publicação disparou o surgimento, em 1881, do ramo mais antigo de uma sociedade dedicada à memória de Dante Alighieri.
Como evitar o inferno?
Muitos fiéis, arrependidos e sinceros de coração, apavorados diante da possibilidade, quase certeza, de irem para o suposto inferno eterno — com suas fornalhas quentes e caldeiras ferventes —, foram externar suas preocupações e temores aos seus confessores. A visão nítida, aterrorizante e palpável descrita n’ A Divina Comédia facilitou o trabalho dos sacerdotes, que muito agradeceram a Dante pela nova versão do inferno que aterrorizou pecadores por séculos a fio.
— Estou arrependido dos pecados que cometi. Não quero ir para o inferno eterno. Existe alguma saída para mim?
Essas palavras se tornaram comuns para inúmeros crentes que, pesarosos, regeneraram-se e passaram a levar a sério seus princípios religiosos. O que fazer para minimizar aquela trajetória indefectível em direção à condenação eterna? Bons e honestos representantes da religião buscaram uma solução para salvá-los, consternados com a situação aparentemente insolúvel dos pecadores arrependidos.
E essa medida seria calcada naquilo que eles haviam aprendido, isto é, a existência de penas irremissíveis, após a morte, para transgressores incautos. Somente séculos mais tarde, em pleno século XIX, o mundo iria conhecer o verdadeiro destino da alma, com notícias provindas do país espiritual, trazida diretamente por seus habitantes: os espíritos desencarnados.
Penas alternativas
A única providência possível, considerando os conhecimentos e a estatura espiritual daquela época, eram as indulgências. A grosso modo, tratava-se de uma punição alternativa, forma de remir as penas dos pecados cometidos, antes de o pecador ser absorvido por um dos fossos do sofrimento subterrâneo imaginados por Dante, desde que acompanhada de confissão e arrependimento.
Originalmente, a ideia era nobre. Era uma nova oportunidade oferecida ao pecador para atenuar suas faltas por intermédio de doações para hospitais, asilos, orfanatos, pessoas pobres, miseráveis e viúvas desamparadas. Uma espécie de substituição da pena, em lugar dos sofrimentos irremissíveis.
As indulgências, inicialmente, não eram concedidas como absolvição dos pecados, e sim como penalidade por se ter cometido um pecado. A medida era justificada pela expressão contida na 1ª Epístola 4.8 de Pedro: … o amor cobre uma multidão de pecados.
Excedentes de méritos
Em que se alicerçavam as indulgências?
Acreditava-se que Jesus Cristo, sua mãe Maria e os apóstolos haviam angariado um surplus (excesso) de méritos durante suas vidas terrenas, que estavam acumulados no Tesouro Celestial do Mérito, e que poderia ser distribuído entre os cristãos menos praticantes da fé, que haviam acumulado um déficit, em razão dos pecados cometidos.
A princípio, para se ter acesso a esse inestimável tesouro, bastaria oração, arrependimento e sinceridade de coração. Infelizmente, atravessadores inescrupulosos criaram uma falsa teologia criativa e engenhosa e passaram a usufruir dos altos valores que a venda das indulgências lhes proporcionavam.
Essa prática alcançou grande popularidade, principalmente junto de pessoas ignorantes, porém ricas. Elas eram convencidas de que, se abrissem mão de parte das riquezas acumuladas durante a vida terrena, receberiam em troca a riqueza espiritual dos santos.
Estava criada uma fonte de lucro fácil, haurida em cima da credulidade, por intermédio de grosseiros propagandistas. No início, ainda se exigia o arrependimento dos interessados em remir seus pecados, mas depois até isso foi esquecido. O dinheiro passou a comprar tudo, até um lugarzinho no céu.
O auge dessa prática se deu em meados do século XVI, quando foi lançada uma aberta política de venda de indulgências, por intermédio de verdadeiros mascates, que percorreram a Europa oferecendo cartas de indulgência.
Nem precisamos dizer como essa prática desconcertou muitos crentes genuínos. Dentre eles, um monge agostiniano e professor de Teologia da Universidade de Wittenberg chamado Martinho Lutero (1483-1546), que, no dia 31 de outubro de 1517, deu publicidade às suas 95 teses contra a prática da venda de indulgências.
Bom filho da Igreja, Lutero aceitava as indulgências, não, porém, a sua comercialização, as distorções da verdade, o abuso e a criação de uma espécie de balcão espiritual com a venda de certificados absolvitórios e cargos eclesiásticos.
Na região de Lutero, coube ao dominicano Johann Tetzel vender as indulgências, para o que ele criou uma espécie de jingle:
Quando a moeda na caixa tilintar, a alma ao céu irá a voar.
Lutero rebateu, dizendo:
Ao tilintar a moeda na caixa, podem aumentar o lucro e a cobiça.
Para ele, a intercessão somente dependia da vontade de Deus.
O céu não está à venda
Equivocados estão os ingênuos, ignorantes ou espertos que pensam poder comercializar com a divindade. Nenhuma autoridade da Terra ou além da Terra pode perdoar nossos pecados, ou seja, limpar as máculas que acumulamos no espírito com nossos enganos.
Nada temos a oferecer às potencialidades divinas, a não ser o arrependimento, a disposição de reparar erros e o esforço de não mais cometê-los. A única criatura capaz de nos perdoar somos nós mesmos, com a transformação interior.
Quer dizer que voltamos ao mesmo drama dos que se achavam indefectivelmente destinados ao inferno de Dante?
Negativo!
Embora Jesus houvesse alertado, segundo as anotações de Mateus 5:26, que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil, a consoladora Doutrina Espírita vem acenar com outro tipo de reparação.
Ouçamos André Luiz3:
Quantas intercessões da prece ardente conquistam moratórias oportunas para pessoas cujo passo já resvala no cairel do sepulcro?!…
Quantos deveres sacrificiais granjeiam, para a alma que os aceita de boamente, preciosas vantagens na Vida Superior, onde providências se improvisam para que se lhes amenizem os rigores da provação necessária?!
Bem sabemos que, se uma onda sonora encontra outra, de tal modo que as “cristas” de uma ocorram nos mesmos pontos dos “vales” da outra, esse meio, em consequência aí não vibra, tendo-se como resultado o silêncio.
Assim é que, gerando novas causas com o bem, praticado hoje, podemos interferir nas causas do mal, praticado ontem, neutralizando-as e reconquistando, com isso, o nosso equilíbrio.
Intercessões
Em várias obras André Luiz cita o instituto da intercessão. A Doutrina Espírita nos esclarece que a intercessão representa demonstração de generosidade de almas já detentoras de altíssimas aptidões perante as autoridades espirituais. Todos nós já fomos agraciados por inúmeras manifestações da misericórdia divina. Elas facilitaram a continuidade das jornadas e nos beneficiaram, ora com a mudança da natureza das cargas expiatórias, ora com o redirecionamento de provações, com o esclarecimento de dúvidas ou mesmo, com a atribuição de trabalhos e pesadas tarefas, que nos trouxeram esclarecimentos e benefícios, que impulsionaram nosso crescimento.
Méritos
Como conciliar o favorecimento ao sofredor com a questão do mérito?
Assim como a oração, a intercessão pode movimentar elementos-força oriundos da Providência. No entanto, cada espírito detém capacidade própria para receber essas bênçãos, condicionada à conquista individual para o mais Alto. Deus socorre o homem pelo homem, desde que o beneficiado detenha um mínimo de capacidade de elevação conquistada em sua trajetória espiritual.
As intercessões, mesmo provindas de espíritos elevados, somente são atendidas quando o espírito se coloca em condições de receber essa ajuda.
Poderíamos citar o caso da intercessão da mãe do espírito André Luiz, que somente alcançou seu objetivo quando ele caiu em si, qual filho pródigo que retornou ao lar paterno. Para resgatá-lo ela enviou Clarêncio, que só conseguiu cumprir sua missão quando André se prostrou diante do Criador e recebeu a carga magnética sublime que ela havia lhe destinado.
Ainda a intercessão
O arrependimento é indispensável ao sofredor que pleiteia a intercessão. Todavia, ele é o caminho, nunca o passaporte livre para novas conquistas. O reconhecimento de falhas pretéritas e o sincero desejo de repará-las são os meios eficientes para a conquista de novas oportunidades de redenção.
Espíritos ainda emaranhados pelos tentáculos dos vícios muitas vezes têm dificuldades para receber o auxílio dos benfeitores. A imantação com parceiros viciados é grande obstáculo para o atendimento. Infelizmente, nesses casos — esclarece André Luiz — enfermidades graves são providências recomendadas para a desintoxicação desses sofredores, muitas vezes por mais de uma encarnação.
Da mesma forma, espíritos rebeldes e temperamentais, que não se resignam de imediato às imposições da morte, permanecem por algum tempo impermeáveis às orações e auxílios de amigos e parentes, até que se rendam à evidência dos fatos.
Finalmente, podemos afirmar que a intercessão pode abreviar ou dilatar o tempo de um espírito na encarnação. Ela está condicionada, todavia, ao desapego e ao preparo interior e depende do nível de responsabilidade de quem intermedeia e do mérito, da boa-vontade e da resignação de quem a recebe.
Considerações finais
Intercessão não é uso indevido de influência para acobertamento de crimes. Quando não há mínimo merecimento, pouco podem fazer os intercessores, por mais sinceros que sejam os votos de seus corações. Podem, no máximo, permanecer ao lado de seus amados protegidos, tutelando-os, inspirando-os, protegendo-os, na medida do possível, como se fossem improvisados professores acompanhando seus alunos.
Encerrando este tema, julgamos oportuno lembrar história narrada por Richard Simonetti, em seu livro Não peques mais!
Um homem foi convocado para depor num tribunal. Temeroso, pediu a ajuda de um amigo.
— Sinto muito, mas não posso acompanhá-lo — respondeu o amigo. O juiz é severo e não me dou bem como ele.
Apelou para outro amigo.
— Somente poderei acompanhá-lo até a porta do tribunal. Ficarei vibrando por você, mas no lado de fora.
Finalmente, conseguiu o apoio integral de um terceiro amigo, que assegurou:
— Sem problemas! Estarei presente, serei seu defensor e farei valer seus direitos.
Que tribunal era aquele e quem eram os amigos?
O tribunal, a morte. O juiz, nossa consciência. O julgamento, a avaliação de nossas ações. O primeiro amigo, os bens materiais, que são úteis na Terra, mas nada significam no além. O segundo defensor era a família. Segue conosco até o túmulo, mas não pode passar dali. E o terceiro amigo?
Esse é representado por nossas boas ações, que nos acompanharão, farão valer nossos direitos e assegurarão futuro tranquilo e feliz para nós.
***
Preces, intercessões, auxílios espirituais, boa acolhida e feliz chegada ao plano espiritual dependerão de nossa coparticipação. De nada adiantarão milhares de intercessores, se não forem respaldados pelos méritos de nossas boas ações.
***
Fiquemos com Emmanuel4:
A súplica da intercessão é dos mais belos atos de fraternidade e constitui a emissão de forças benéficas e iluminativas que, partindo do espírito sincero, vão ao objetivo visado por abençoada contribuição de conforto e energia. Isso não acontece, porém, a pretexto de obséquio, mas em consequência de leis justas.
O homem custa a crer na influenciação das ondas invisíveis do pensamento, contudo, o espaço que o circunda está cheio de sons que os seus ouvidos materiais não registram. Ele só admite o auxílio tangível.
No entanto, na própria natureza física veem-se árvores venerandas que protegem e conservam ervas e arbustos, a lhes receberem as bênçãos da vida, sem lhes tocarem jamais as raízes e os troncos. Não olvides os bens da intercessão.
Referências
1 – BROWN, Dan. Inferno. Cap. 15. Pg. 65. 2013. EDITORA ARQUEIRO.
2 – Idem, Pg. 9. 2013. EDITORA ARQUEIRO.
3 – LUIZ, André. Ação e reação. Psicografia de Francisco Cândido Xavier. 15. Ed. Cap. XV. Pg. 246. Julho de 1993. FEB.
4 – EMMANUEL. Pão nosso. Psicografia de Francisco Cândido Xavier. Lição 17. “Intercessão”. Pg. 45. Agosto de 1987. FEB